Lembro bem da tensão que pairava como fogo no ar de Porto Alegre na semana que antecedeu o Gre-Nal decisivo de 1999. As semanas de Gre-Nal são tensas, verdade, mas aquela seria especialmente nervosa ainda que o jogo não fosse Gre-Nal. Pois Dunga, o capitão do Tetra, havia jurado Ronaldinho.
Jurado, você sabe: em futebolês, vendeta. Dunga dizia que Ronaldinho era desleal, que nos Gre-Nais anteriores entrara por cima da bola, tentando machucar os jogadores do Inter. E advertira: na próxima, esse rapaz vai se quebrar.
Era grave. O que aconteceria em campo? Como o jovem jogador do Grêmio, recém-empossado como titular, reagiria?
A resposta de Ronaldinho foi retumbante. Em campo, aplicou dois dribles humilhantes no veterano capitão colorado: um balãozinho e uma “rabiosca”, gênero de drible antes nunca visto no Rio Grande do Sul, a bola puxada com o pé direito por trás da perna de apoio, uma bola enganchada, torta, veloz, que deixou atônito o experiente volante do Inter.
Aquele Gre-Nal foi um marco. Os dois dribles escorchantes não haviam submetido qualquer um. A vítima fora ninguém menos do que o admirado e não raro temido Dunga. As cenas do jogo foram passadas em rede nacional e acabaram motivando a convocação de Ronaldinho para a Copa América no dia seguinte. Cobri o Gre-Nal e fui cobrir a Copa América. Estava no estádio precário da precária cidade de Ciudad del Este naquela noite amena de começo de inverno quando Ronaldinho vestiu, pela primeira vez, a camisa da Seleção principal do Brasil.
A Seleção goleava distraidamente a Venezuela, o jogo já ia no segundo tempo, e Ronaldinho tocou na bola pela primeira vez e já o primeiro toque foi genial. Dentro da área inimiga, a bola dominada no ar, tudo aconteceu muito rápido – balãozinho no primeiro zagueiro, drible vertical no segundo, chute consciente entre o goleiro e a trave, a comemoração de alegria imaculada, um garoto fazendo o que mais gosta de fazer, o futebol genuíno e puro e feliz, da vila, do bairro, da bola de meia. Foi bonito de ver.
A carreira de Ronaldinho disparou. A de Dunga, num contraponto cruel, entrou em declínio. Dunga era contestado até com raiva no clube em que foi criado, sofreu uma reserva resignada e, mesmo tendo marcado o gol que salvou o Inter da segunda divisão, só teve a repulsa da nova diretoria. Foi pressionado e constrangido até aceitar rescindir seu contrato com o clube. Exigiu, porém, o dinheiro que o Inter lhe devia por lei. Escorraçado do Beira- Rio, recebeu o cheque no Ministério do Trabalho, como qualquer operário demitido. Não tocou em um centavo. Repassou o valor integral para entidades de caridade, declarando, com asco:
– Era um dinheiro triste.
Dunga saiu do Inter rompido com o clube, mas admirado e amado por sua torcida. Dunga se portou com a elegância e a dignidade que nortearam sua carreira. Mostrou que ainda existe honra nos homens e é desse material que são feitos, mais do que os homens, os heróis.
Por ironia, o contraponto com Ronaldinho não se encerrou. Como Dunga, Ronaldinho está saindo do seu clube de origem em litígio com a direção. Mas a semelhança com Dunga acaba aí. Ronaldinho não é mais admirado e amado por sua torcida; ao contrário, é desprezado. Ronaldinho não está em decadência dentro de campo; continua em ascensão. No entanto, no último jogo, ao marcar um gol, foi vaiado pela torcida. Por sua torcida. Que, se pudesse articular em coro uma única frase, talvez explicasse:
– Era um gol triste.
– Era um gol triste.
O que fez Ronaldinho para merecer tal tratamento? Simples: Ronaldinho desrespeitou sua torcida. Não importa a lei da Fifa que proíbe um clube de negociar com um jogador sem informar o clube com o qual esse jogador tem contrato. Não importa a relação trabalhista que Ronaldinho tem com o Grêmio. A questão não é legal; é ética.
Nenhum gremista acalentava a ilusão de que Ronaldinho permaneceria no Grêmio para sempre.
Qualquer gremista compreenderia a saída IMEDIATA de Ronaldinho.
A FORMA como Ronaldinho o fez é que se tornou incompreensível. Assinou contrato com o PSG às escondidas, enquanto fingia negociar com o Grêmio. Mais: negou com veemência ter assinado contrato, renovou juras de amor ao clube, repetiu que seu desejo era continuar em Porto Alegre.
Por quê? Por que não avisou: “Tenho uma proposta, se não receber outra equivalente, vou embora”?
Aí é que está. A resposta é óbvia: por esperteza. Ronaldinho tentou tirar o maior proveito possível da situação. Quanto menos o Grêmio ganhasse, mais ele ganharia. E se o Grêmio não ganhar nada, como ele espera, tanto melhor, mais lhe cabe. É o seu raciocínio.
Agora, o sonante que vai tilintar nos cofres do Grêmio, o valor da transação, nada disso é relevante para a torcida. O que importa é a ATITUDE do jogador, que, afinal, era o seu herói.
Renato Portaluppi saiu do Grêmio quase de graça, Gamarra deixou o Inter por pouco mais do que isso. Renato encerrou sua carreira milionária repetindo que jamais vestiria a camisa do Inter. Gamarra continua dizendo que nunca envergará a do Grêmio.
Por que fazem isso? Por ódio ao rival? Por amor ao seu clube? Não! Por profissionalismo. Por respeito à torcida.
Gamarra e Renato serão para sempre amados por suas torcidas. Serão ídolos eternos. Pelo que fizeram em campo, sim, mas sobretudo pelo caráter que têm.
Ronaldinho perdeu essa chance. Mesmo que prossiga jogando no Grêmio por mais uma temporada, mesmo que colecione gols e títulos, para a torcida, jamais alcançará tal dimensão de homem e, por conseqüência, de herói.
E é Ronaldinho, sim, o responsável por seus atos, porque ele não é uma foca amestrada que só sabe jogar bola, nada mais. Ele sabe o que faz e o que diz. Diz, por exemplo, que não enganou ninguém.
Ronaldinho, curiosamente, acredita nisso… Ronaldinho diz também que não se importa com as vaias que ouviu ao marcar um gol, dias atrás. Ele não se importa. É de se acreditar. Outros, talvez, se importassem. Como Gamarra, como Renato Portaluppi, como Dunga. Mas esses são, justamente, outros. Esses, talvez Ronaldinho jamais consiga compreender.
Texto adaptado by David Coimbra
Grande Abraçooo
